Deide Freire de Andrade (na foto, ao centro), de 47 anos, morador do povoado de Araras, no município de Faina, a 270 quilômetros de Goiânia, teve de trocar o dia pela noite. Ele é portador de xeroderma pigmentoso (XP) – fruto de uma mutação genética que gera hipersensibilidade à luz e deixa a pessoa até mil vezes mais suscetível ao câncer de pele do que as demais pessoas. Assim, como ele, há outras pessoas que possuem a doença e vivem em Araras. O local recebeu pela segunda vez, na noite desta quinta-feira (24), o Programa Acelerar - Núcleo Previdenciário.

Rara, a doença atinge 2 a cada 1 milhão de pessoas. Em Araras, segundo estimativas da Associação Brasileira de Xeroderma Pigmentoso (AbraXP), existem 24 pessoas com a doença, isso faz com que a taxa de incidência registrada na comunidade – de 1 para cada 40 habitantes – seja a maior do mundo. No vilarejo vivem 200 famílias, são cerca de 800 pessoas.

O povoado é isolado, de difícil acesso. A estrada é esburacada (foto), há várias pontes. Uma comitiva liderada pela diretora do Foro da comarca de Goiás, juíza Alessandra Gontijo Amaral, foi organizada para que o Acelerar Previdenciário chegasse até o local. O fórum de Goiás foi o ponto de partida do grupo, composto por 8 carros, com 39 pessoas, entre juízes, servidores do Tribunal do Justiça do Estado de Goiás (TJGO) e do fórum local, servidores da Advocacia-Geral da União (AGU) que representam o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), promotores e estagiários.

Foram 110 quilômetros de asfalto mais 19 de estrada de chão batido, totalizando quase duas horas de viagem. Na chegada ao povoado, o Sol já estava quase indo embora. Quando escureceu, algumas pessoas resolveram aparecer na escola do povoado, local montado para abrigar as quatro bancas presididas pelos juízes Reinaldo de Oliveira Dutra (coordenador do Núcleo Previdenciário), Rodrigo de Melo Brustolin, Thiago Cruvinel Santos e Alessandra Gontijo.

Assim como Deide, as duas filhas dele – Raphaela Pereira Freire, de 12 anos, e Letícia Pereira Freire, de 14 – possuem xeroderma. Porém, nelas a doença não se manifestou. Diferentemente do pai, as meninas vivem uma vida “aparentemente” normal e, por isso, ao ficarem sabendo que o povoado receberia mais uma vez o Acelerar Previdenciário, foram com a mãe mais cedo, antes do Sol se pôr.  As duas conseguiram o benefício assistencial ao deficiente da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas). O dinheiro ajudará nas despesas, já que a única renda da família é a aposentadoria por invalidez de Deide, que obteve o benefício em agosto do ano passado, na primeira vez em que o programa esteve no povoado de Araras. “Com a minha aposentadoria eu compro as remédios e algumas coisas aqui para minha casa, mas não está dando. Algumas pessoas ajudam a gente. Sou grato por ter conseguido esse salário, porque se não tivesse nada seria pior. Passaríamos até fome”, falou Deide com muita dificuldade – ele tem prótese praticamente em todo o rosto e não tem a visão do olho direito.

O homem conta que sua rotina é diferente da maioria dos outros moradores, uma vez que a doença dele já está em um grau avançado. Deide tem consciência de que, para prolongar sua vida, é preciso trocar o dia pela noite ou viver em ambiente onde a luz não possa entrar. Para isso, quando precisa, ele sai de casa às 6 horas e fica no máximo até as 10 horas, depois volta e só sai quando o Sol desaparece. Apesar de gostar do dia, ele não arrisca e prefere se esconder. Dos seis irmãos de Deide, três foram diagnosticados com a doença, um morreu. “Eu só quero agradecer a todos por não esquecerem da gente. As pessoas demoraram a olhar para nós”, agradeceu.

Já o jovem Hallison Wendel Machado Freire (foto à esqueda), de 13 anos, prefere o dia, mas é na noite que encontra a proteção. O menino também foi beneficiado com a ação do TJGO. Ele hoje recebe um salário mínimo que é usado para comprar acessórios para se proteger do Sol. No adolescente, a doença também se manifestou. Ele era criança quando os primeiros sintomas apareceram e logo os pais receberam o diagnóstico. Desde então, a vida da família passou por algumas mudanças. Larissa Machado Freire, de 17 anos, é irmã mais velha de Hallison. Ela conta que descobriu em 2014 que também é portadora da doença, porém não manifestada. “Levei um susto. Tenho medo do xeroderma manifestar-se em mim e nos meus filhos”, desabafou a jovem.

Hallison e Larissa tentam fazer de tudo para se protegerem do Sol. O quarto do menino foi construído no lugar onde pega menos raios ultravioletas. O perigo também está presente nas luzes artificiais: 8 horas expostas a lâmpadas fluorescentes equivalem a 1 minuto debaixo de Sol. Por isso, segundo a Larrisa, na casa algumas lâmpadas foram substituídas. Apesar dos cuidados, Halisson já passou por cinco cirurgias para remoção de lesões. Os pais de Hallison e Larisa são primos de primeiro grau, o que aumenta as chances de filhos com doenças genéticas. Por causa dos filhos, Gleice Francisca Machado tornou-se presidente da AbraXP e luta para levar benefícios aos moradores do local.

Mesmo com a doença manifestada, Hallison precisa ter contato com o mundo exterior e, para isso, é preciso disciplina. Filtro solar fator 60, boné e roupas de manga longa se tornaram acessórios indispensáveis para ele. Cuidados que viraram rotina também para Larissa. “É triste ver meu irmão assim. Muitas vezes eu vou para a rua e ele não por causa da exposição do Sol”, frisou. Para ir à escola, apesar de morar perto, o menino vai de passos apressados e menos de 5 minutos chega. O futebol com os amigos é na sombra, quando tem Sol.

Os trabalhos se encerraram às 21h30, quando a juíza Alessandra Gontijo realizou a última audiência. No escuro da noite, a equipe do Acelerar Previdenciário do TJGO se despediu dos moradores. Porém, com eles ficaram a esperança de dias melhores. Para toda a equipe do programa, ficou a certeza de que alegria da vida não se resume ao que somos, temos ou conquistamos, mas de saber que somos seres em aperfeiçoamento e aprendizes todos os dias.

“Aqui, aprendemos que se choramos por ter perdido a oportunidade de ver o pôr do Sol, perderemos a oportunidade de ver e apreciar o brilho das estrelas. O brilho mais intenso que vemos não é o brilho do Sol, mas aquele que emana de pessoas como as que encontramos aqui”, finalizou a juíza.

Homenagem
Como forma de agradecimento, a juíza Alessandra Gontijo foi homenageada pelos moradores do povoado de Araras. “É uma simples surpresa para que a senhora saiba o quantos estamos felizes e agradecidos. Obrigada por olhar por nós”, disse Gleice Machado.

A magistrada disse que o lugar lhe traz muita alegria e lembrou que a iniciativa faz parte de um compromisso do Poder Judiciário em atender aos portadores de xeroderma muito bem. “Volto aqui novamente com toda essa equipe e agradeço todo o carinho recebido. O Judiciário está sempre a disposição para atendê-los com respeito. Obrigada pelo carinho”, destacou Alessandra.

O coordenador do Núcleo Previdenciário, Reinaldo Dutra, frisou que os servidores do Poder Judiciário estadual estavam ali para atendê-los. “Sabemos da dificuldade que vocês enfrentam, principalmente aos portadores da doença. E hoje eu fiquei um pouco mais feliz com o atendimento realizado, porque o número de casos graves atendidos foi menor. Espero que um dia a gente venha aqui e não tenha um único caso de xeroderma pigmentoso que precise do benefício. No dia em que isso acontecer talvez o nosso objetivo tenha sido alcançado porque, apesar de ser uma comunidade agrária e carente, será livre da doença”, pontuou.

Reinaldo Dutra enfatizou que a equipe apenas tentou contribuir para amenizar o sofrimento dos moradores. “É só um esforço para tentar ajudá-los. Agradecemos a oportunidade de aprender com vocês e espero ser convidado para a próxima edição”, finalizou. (Texto: Arianne Lopes/Fotos: Aline Caetano – Centro de Comunicação Social do TJGO) 

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