O acesso a um dos direitos mais básicos de um cidadão, aquele que se refere à garantia da moradia, poderá ser alcançado por quase 3 mil famílias através de uma iniciativa do Poder Judiciário para legalizar a situação dos moradores do povoado de Arantina (pertencente à comarca de Acreúna), que há mais de 40 anos ocupam áreas e imóveis em situação irregular. Com o apoio da Corregedoria-Geral da Justiça de Goiás (CGJGO), foi realizada, nesta quinta-feira (30), no auditório do Tribunal do Júri de Acreúna, a primeira audiência pública para buscar alternativas para a solução da questão.

Sensibilizado com a situação dos moradores de Arantina, com a qual se deparou desde 2013, o juiz local Reinaldo de Oliveira Dutra explicou, ao abrir a audiência pública, que o evento tem por finalidade aproximar o Judiciário da sociedade, possibilitando a troca de informação, expressão de ideias, sugestões e solução de dúvidas diversas relacionadas ao problema de Arantina. Ele deixou claro que todo o contexto será levado ao conhecimento do corregedor-geral da Justiça de Goiás, desembargador Walter Carlos Lemes, e do juiz Murilo Vieira de Faria, auxiliar da Corregedoria e que está à frente de assuntos afetos à regularização fundiária. 

Na oportunidade, o magistrado também instaurou uma comissão para avaliar qual o procedimento adequado e as medidas cabíveis para resolver efetivamente a demanda e encaminhá-los ao corregedor-geral para que seja encontrada a forma mais adequada e rápida de regularizar a situação, inclusive garantindo a segurança jurídica. “Com os documentos em mãos, os moradores terão seus imóveis valorizados e acesso a crédito, que hoje é negado a eles justamente pela falta das escrituras das áreas. Contamos com o auxílio da Corregedoria e a situação fática, em si, gera insegurança jurídica, uma vez que a população fica sem acesso a financiamentos, não pode comercializar suas propriedades e fica à margem de um simples recibo. O próprio corregedor-geral já se comprometeu a nos ajudar a encontrar a melhor saída para resolução desse conflito. Anda que tenhamos que dispor de tempo maior, empreenderemos todos os esforços para dar uma solução para esse povo, que já sofreu muito”, ressaltou.

Para o juiz Rodrigo de Melo Brustolin, da 3ª Vara Cível de Rio Verde, que se deslocou da comarca para participar da audiência, é preciso que o Judiciário aja no sentido de facilitar e desburocratizar o processo de regularização fundiária. “Prover os proprietários desses imóvel de sua posse legal é resgatar a dignidade de cada um deles, que poderão vender seu patrimônio com segurança jurídica”, ponderou.

Já o presidente da subseção da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) local, Rafael Justino, parabenizou Reinaldo Dutra e elogiou seu senso de Justiça e humanidade ao abraçar a causa com tanta dedicação. “Da nossa parte, dispensaremos apoio irrestrito. Fica aqui o registro do meu esforço pessoal e classista para o êxito dessa questão”, realçou.

Por sua vez, o prefeito Edmar Neto lembrou que a demanda é conhecida por toda a sociedade e também pelo Poder Público local. “Disponibilizaremos o que for necessário para resolver esse problema que se arrasta por tantos anos. A maioria das áreas não é documentada e talvez seja o caso de realizar uma força-tarefa em um espaço breve de tempo”, acentuou.

Conquista almejada

A conquista desse direito é, segundo o vereador Júlio César Naves Filho, conhecido como Julinho da Arantina e mora lá desde criança, um sonho antigo. ‘Fico emocionado ao perceber que existe uma união de esforços para que esse povo seja finalmente reconhecido em seus direitos. Infelizmente, ninguém que mora em Arantina consegue hoje fazer um financiamento, nem recebe um cheque moradia. Nós, políticos, perante essa população, estamos desacreditados e, sem dúvida, o Judiciário alavancou o projeto”, enalteceu.

Morador mais antigo de Arantina, o professor aposentado Jorgelino Teodoro Nunes, de 71 anos, que chegou na cidade em agosto de 1972 e assumiu a escola local ainda inacabada, classifica a atitude do Judiciário como “grandiosa” e observou que essa proposta fará com que o povoado seja visto com os “olhos do progresso, da paz e da prosperidade”. “Aqui, inicia-se um processo de estabilização. O sentimento de todos os arantinenses é de gratidão ao Poder Judiciário”, emocionou-se. Participaram ainda do evento a juíza Vivian Martins Melo Dutra, diretora do Foro de Acreúna, o vice-prefeito Claudiomar Portugal, e o tabelião do Cartório do Registro de Imóveis de Acreúna, João Elias Martins.

Situação caótica

Engajado na luta pela legalização dessa grave situação que assola a população de Arantina, o vereador Welton Sardinha de Moraes, o “Neim”, que tem parentes residentes na região, onde também foi criado, conhece de perto as inúmeras dificuldades enfrentadas pelos moradores locais. Ele explicou que Acreúna hoje não tem um bairro tão carente quanto o povoado, cujos moradores sofrem com a falta de estrutura básica de saúde, segurança e transporte público, agravada pela situação irregular das áreas e imóveis ocupados pelos habitantes há várias décadas. “A única garantia que essas pessoas tem de que possuem algo em seu nome é um recibo de compra e venda feito à mão, que legalmente significa muito pouco ou quase nada. Aqui não temos um banco, nem sequer um posto de gasolina decente. Isso também gera uma grande crise de falta de emprego. Quem vai investir em um local totalmente irregular, sem documentação legal, um direito básico desses cidadãos?”, questiona.

A falta de segurança é outro problema recorrente na cidade, onde os assaltos são constantes. A irregularidade fez com que os policiais tivessem que trabalhar em Acreúna e não existe nenhuma autoridade a quem a população possa recorrer no caso de crimes. A comerciante Iolanda Simões Borges, moradora antiga de Arantina e dona de uma das poucas mercearias da cidade, conta que foi assaltada há pouco tempo e que os criminosos levaram aproximadamente 700 reais, único dinheiro que tinha em caixa há semanas. “Aqui passamos falta de tudo e o dinheiro não circula porque ninguém quer investir em nada aqui com essa irregularidade. Temos que vender as coisas a preços módicos e nem esse local onde funciona o meu comércio tem escritura. É como se você tivesse algo valioso, mas não pudesse dispor disso, entende? Para piorar ainda temos que lidar com o medo e a insegurança cotidiana dos assaltos. Dia desses, cinco homens chegaram aqui em uma Hilux, pediram água, guaraná e balinhas. Me perguntaram se eu trocava 50 reais, só para verificar o dinheiro que eu tinha em caixa. Cinco minutos depois, apontaram uma arma para a minha cabeça e me mandaram ficar quieta. Não pude fazer nada, levaram tudo e eu não tinha a quem chamar porque não tem posto policial em Arantina”, desabafa.

Jorgelino tenta há 45 anos alertar as pessoas e as autoridades do problema vivenciado pelos moradores de Arantina. Desacreditado, em razão das inúmeras promessas já feitas para solucionar a questão, ele relata que paga IPTU caro todo mês das casas que possui, mesmo sem ter o documento legal de nenhuma delas. “É um descaso total, moramos em Arantina a título de recibo, não temos garantia de nada, passamos aperto de todo jeito. Quando alguém precisa de um serviço também tem que mudar daqui. Não sabemos mais o que fazer, nossa esperança agora é que o Judiciário nos dê uma alternativa séria e viável para realmente resolver essa pendência, que prejudica a vida de todo mundo. Não temos como pegar um empréstimo no banco e não há dinheiro em circulação sem capital”, indigna-se.

Sem transporte

Também aposentado, Wilson Dias Costa, de 78 anos, outro morador antigo de Arantina, que reside no local há mais de 46 anos, diz que cansou de pegar carona para Acreúna porque não existe ônibus ou qualquer outro tipo de transporte público disponibilizado aos moradores. “Lutamos muito aqui e damos nossa parcela de contribuição para que as coisas melhorem. Mas, sem a regularização dos imóveis e áreas, nem o Poder Público se lembra que existimos. Vivemos na base da carona e são poucas as pessoas que têm carro porque o povo aqui é muito humilde. No próximo mês, precisamos, por exemplo, fazer uma revisão biométrica em Acreúna para que não tenhamos o título de eleitor cancelado. Embora atualmente façamos parte de um contingente de cerca de 1.200 eleitores que votam em Acreúna, não temos qualquer meio de transporte para nos auxiliar. Nenhum governo quer realizar obras aqui, seja de âmbito federal ou estadual. Deram início à construção de uma nova escola aqui que serviria para abrigar muitas crianças, mas está tudo parado. Simplesmente não existimos”, reflete. (Texto: Myrelle Motta - assessora de imprensa da Corregedoria-Geral da Justiça de Goiás/Fotos: Wagner Soares - Centro de Comunicação Social do TJGO) Ver galeria de fotos.