Ceres, a 179 quilômetros de Goiânia, foi palco do assassinato do ex-presidente sírio Adib Shishakli, em 1964. O crime aconteceu na ponte que liga o município a Rialma e teve motivações políticas – o autor foi Nawaf Ghazaleh, um conterrâneo druso, que buscava vingança. As páginas do processo, bem como fotos e os projéteis que atingiram a vítima, agora, poderão ser conferidos no Centro de Cultura e Memória do Poder Judiciário, na cidade de Goiás.

Os autos, guardados há mais de cinco décadas, foram resgatados a pedido do sobrinho-neto de Adib, Tamer Barazi, um corretor de imóveis americano, que vive em Nova York (EUA) e está escrevendo um livro biográfico sobre o irmão de seu avô, morto aos 54 anos de idade. Ele entrou em contato com o Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO), por meio da Embaixada da Síria no Brasil, para saber mais sobre o homicídio que, na opinião dele, pode ter sido premeditado - a vítima havia buscado refúgio no Brasil, após golpe militar que lhe tirou o cargo de presidente.

“Ter acesso ao processo jurídico é muito importante para o passado da minha família e também faz parte da história da Síria, que não é muito estudada. Devido à atual guerra civil no país, é de grande valia preservar essa história, para entender melhor os cenários passados e atuais”, afirmou Barazi, cujo os pais e familiares mais próximos nasceram em território sírio, mas hoje também moram nos Estados Unidos.

O presidente da Comissão Cultural do TJGO, desembargador Itaney Francisco Campos, que coordenou a implantação do Centro de Memória, também teve acesso aos autos e, devido à relevância histórica, sugeriu a inclusão do processo jurídico no acervo do museu goiano. “As páginas mostram o desdobramento da conduta política de Adib Shishakli, com um desfecho trágico. Ele procurou abrigo no sertão goiano, mas não conseguiu escapar de seu algoz, que, por sua vez, alegou ter sofrido, junto ao seu povo druso, perseguição pelo então governo”.

Envolvido em resgate de processos históricos, o juiz do 1º Juizado Especial Criminal de Anápolis, Mateus Milhomem de Sousa, foi o primeiro magistrado incumbido na tarefa de localizar os autos do homicídio. “É um fato de interesse histórico e, infelizmente, o Brasil não tem tradição de guardar objetos e documentos. Isso faz parte do patrimônio histórico para entender o futuro e mostra elementos que misturam poder, concepções ideológicas, questão de estado e defesa da honra”. Além de oficiar a comarca de Ceres, o magistrado solicitou à Prefeitura da cidade para preservar a tumba onde, inicialmente, Adib foi enterrado, antes de ser exumado e ter os restos mortais enviados à Síria.

História entrelaçada

Os autos, que foram digitalizados e enviados para Barazi, narram os últimos dias do ex-governante árabe e seu assassinato, com cinco tiros. O acusado, Nawaf Ghazaleh, um ex-pugilista que morava em Taguatinga, no Distrito Federal, e trabalhava como ambulante, conseguiu fugir e se apresentou dias depois, com os melhores advogados criminalistas brasileiros na época, como Nelson Hungria, que depois se tornou ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), e Romeu Pires de Campos Barros. Segundo Itaney Campos, a comunidade drusa no Brasil se uniu para arcar com os custos da defesa do réu, que acabou sendo absolvido em júri popular, realizado em Goiânia. A mudança do local da sessão de julgamento, inclusive, foi um pedido dos advogados, que argumentaram sobre a comarca de Ceres ser pequena e que, portanto, todos conheceriam a vítima.

“O júri não funciona como um juiz togado, que detém de mais técnica. O corpo de jurados aceita argumentos que um magistrado poderia não aceitar normalmente. Essa é a sabedoria do júri popular, que considera o lado humano e o aspecto social do homicídio doloso”, ponderou o desembargador sobre a absolvição.

A tese de defesa arguiu que Nawaf agiu sob forte emoção e, para compreender o base de argumentação, é preciso mergulhar na memória da Síria do início do século passado. O território druso, o qual o réu fazia parte, não foi incorporado ao território sírio de forma pacífica e vivia como uma minoria renegada às montanhas, chamadas de Jabal al-Druze, em árabe.

Após se tornar independente da França, a Síria experimentou uma série de golpes militares na presidência e, um deles foi, justamente, feito por Adib Shishakli, em 1949, confirmado em eleição popular em 1953. Em seu mandato, antes de ser deposto por outro golpe em 1954, Adib promoveu uma integração nacional com o uso da força e censura.

Historicamente, os drusos estavam mais alinhados à política iraquiana do que a síria e isso soou como uma ameaça ao então presidente. Adib prosseguiu uma campanha implacável para destruir o poder independente de seus chefes, o que acabou, por sua vez, gerando um exército de inimigos. Conforme o livro The Syrian Land: Processes of Integration and Fragmentation, de Thomas Philipp e Birgit Schäbler , essa dominação forçada deixou um duplo legado: o enfraquecimento druso, bem como seu declínio político e econômico no cenário sírio, enquanto as medidas austeras de Adib exacerbaram os sentimentos nos drusos de que eles eram uma minoria perseguida e tratada injustamente pelo Estado.

Os historiadores Phillip e Birgit apontam, também, que Adib enviou 10 mil soldados para ocupar as montanhas. Várias cidades da região foram bombardeadas com armas pesadas, matando dezenas de civis e destruindo residências. Segundo relatos dos próprios drusos, usado, inclusive, no processo legal do homicídio, o político foi responsável pela morte de 70 civis do grupo minoritário, o que teria gerado sentimento de revolta e vingança em Nawaf.

Tão logo Adib havia chegado ao poder, rápida foi sua deposição, com mais um golpe militar, em 1954. Após a saída do governo, o ex-presidente passou pela França, Suíça e foi aconselhado por amigos a procurar abrigo no Brasil. No interior goiano, comprou uma fazenda e abriu um armazém, viveu por quatro anos com a mulher, a filha caçula e o filho mais velho, do primeiro casamento. Em 1962, concedeu entrevista para a revista Cruzeiro sobre sua nova vida longe da política, o que, provavelmente, chamou a atenção do acusado, que passou a saber do paradeiro do antigo presidente (foto abaixo com mulher e a filha, em Ceres).

Após o crime, o corpo de Adib chegou a ser enterrado no cemitério de Ceres, mas foi exumado e enviado ao país natal, para receber as honrarias destinadas a um ex-líder. Depois da absolvição, Nawaf voltou para Taguatinga e morreu em 2005 – mais uma vez a comunidade drusa se uniu, desta vez para arcar com os custos do traslado dos restos mortais para a Síria, onde teria sido recebido como herói.

O crime

Segundo relatos de testemunhas, Nawaf chegou em Ceres no dia 24 de setembro de 1964 e, sem se identificar, passou três dias pesquisando informações sobre Adib. Descobriu que todo domingo o ex-general ia para a casa de amigos em Rialma, cidade vizinha, e voltava a pé pela ponte que liga os dois municípios.

No dia 27, ele ficou horas à espreita até que avistou o ex-presidente. De acordo com testemunhas, os dois discutiram em árabe. O ambulante sacou o revólver, Adib tentou fugir, mas foi atingido por um tiro. No chão, foi alvejado mais quatro vezes. Nawal chegou perto para conferir se a vítima estava morta. Ao ter certeza, chutou o corpo.

Após o crime, o assassino teria voltado à pensão onde estava hospedado, tomado banho, trocado de roupa e ido ao cinema, na cidade. Ficou até o fim da sessão, retornou à pensão e só deixou a cidade na manhã seguinte, quando pegou um ônibus até Anápolis, a cerca de 50 quilômetros,  onde, depois de desembarcar, foi ao encontro de três amigos conterrâneos para pedir ajuda.

Sem falar o real motivo, Nawaf disse precisar ir imediatamente para Belo Horizonte, supostamente "para não perder um negócio". Desconfiados, os amigos contaram, posteriormente, que insistiram em saber o real motivo da pressa e discutiram até Nawal sacar o revólver e exigir, sob ameaça de morte, os três a entrarem num carro e pegar a estrada. Eles deixaram o ex-pugilista na rodoviária interestadual da capital mineira. O fugitivo pegou, então, um ônibus para Teófilo Otoni, no interior mineiro, onde se encontrou com parentes e outros integrantes da comunidade drusa no Brasil, para os quais teria confessado sobre o crime. Todos festejaram e prometeram apoiá-lo, como foi feito, reunindo mais de 100 milhões de cruzeiros, moeda da época.

Nawal foi apresentado à polícia uma semana após o crime e descreveu os detalhes sem remorso ou medo. Afirmou ter decidido matar Adib quando leu, em um jornal, que o ex-presidente havia sido anistiado. “Matei Adib porque ele era impiedoso, um monstro. Durante o tempo em que esteve no poder quis, por todos os meios, exterminar os drusos, chegando a assassinar mais de 70 pessoas, inclusive crianças e mulheres gestantes. Quando soube que este homem, agora anistiado, poderia voltar à Síria, o sangue me subiu a cabeça. O povo brasileiro saberá entender que eu cumpri o meu dever, eliminando um grande inimigo do meu povo”, alegou, no depoimento prestado ao delegado responsável pelo caso à época, em Ceres.

Os investigadores suspeitavam que o crime havia sido planejado por um grupo de drusos. Inclusive, tinham certeza de que os três amigos de Nawal o esperavam em Anápolis para ajudá-lo a escapar do cerco policial - tanto que os prenderam antes, mesmo, de capturar Nawal. Contudo, os três negaram saber dos planos do homicídio. Ao jornal Correio Braziliense, quatro drusos radicados no Brasil, — dois em Brasília, dois em Belo Horizonte —, admitiram, sob a condição do anonimato, que a comunidade deles em Minas Gerais planejou e financiou a execução do general, 54 anos atrás. (Texto: Lilian Cury - Centro de Comunicação Social do TJGO, com informações de Renato Alves, do Correio Braziliense / Fotos: Roberto Stuckert, Revista Cruzeiro, cedidas pelo Correio Braziliense)