“Se tiver que morrer, vai morrer mesmo!” A mensagem, em áudio, remete às ameaças de morte a um professor e foram disseminadas por grupo de jovens alunos no WhatsApp sugerindo um possível massacre em um colégio de Luziânia, município do Estado de Goiás, cuja região também pertence ao Entorno do Distrito Federal. O ano era 2019, que antecede o período da pandemia Covid-19, e um aluno do 3º ano do ensino médio, que tinha um comportamento agressivo e problemático no ambiente escolar, encabeçava o grupo.

A revolta cresceu e fugiu do controle dos gestores tornando-se cada vez mais perigosa. No entanto, o que culminaria numa suposta tragédia, como demonstram as estatísticas nacionais que apontam para um crescimento descomunal de violência dentro das escolas atingindo crianças e jovens, teve um desfecho diferente graças ao inovador Programa Pilares, executado pela Corregedoria-Geral da Justiça de Goiás e pioneiro no País, cujo foco é educar pela paz e pacificar conflitos nas escolas por meio de técnicas inovadoras utilizadas nos círculos restaurativos de construção de paz.

Após um pedido desesperado da diretora, foram aplicados os denominados círculos de construção de paz com os jovens, com seus responsáveis e com o corpo diretivo da escola, onde foi possível identificar com clareza toda a situação.

No círculo de paz descobriu-se que o principal responsável pelos áudios, líder do grupo, sofria com um trauma relacionado a um abuso sexual praticado por um parente quando tinha apenas sete anos e os outros adolescentes, também envolvidos no conflito, sofriam de forte depressão, pois não tinham pais e a a mãe estava quase sempre ausente, já que passava o dia todo trabalhando em Brasília, ou seja, de alguma forma, esses alunos também sofriam com violência ou negligência dentro da própria casa e acabaram trazendo o problema para a escola, cuja única forma de expressão era a agressividade.

Mudança de comportamento depois do acolhimento

“Na verdade ali estava um pedido de socorro, de ajuda, de apoio. Esses adolescentes precisavam ser ouvidos, acolhidos. Esse conflito chegou a manifestar fortes ameaças aos professores, inclusive com falas de morte, caso esses adolescentes não alcançassem os seus objetivos e cogitou-se um possível massacre na escola. Quando a diretora nos comunicou pedindo orientações e socorro, nos mostrando a gravidade das mensagens dos alunos via Whatsapp, fizemos as oitivas com os envolvidos e, de imediato, identificamos a necessidade de aplicação dos círculos de paz. Falamos com a escola sobre o projeto e, sem perder tempo, iniciamos esse trabalho com os jovens, seus responsáveis e a diretora do colégio. A resposta foi surpreendente. Conseguimos reverter aquele quadro e, ainda, conhecemos outros conflitos que esses alunos viviam, sem que os pais soubessem”, ressaltou Clodoaldo de Mesquita, de 52 anos, inspetor escolar na Coordenação Regional de Educação de Luziânia, que trabalha com o Pilares na Unidade CASE com reeducandos locais, e na época atuou na mediação do conflito no Colégio Mingone.

Clodoaldo contou que o aluno que liderava o grupo foi vítima de abuso sexual por parte de um familiar ainda muito criança e chorou muito ao dar seu depoimento, expondo toda a dor, revolta e sofrimento que esse episódio causou em sua vida.

“Esse jovem hoje mora em outro Estado e afirmou que depois da experiência despertou o desejo de estudar Psicologia e, futuramente, ministrar palestras em escolas sobre a cultura de paz e a comunicação não violenta. Outra jovem, naquele período, que também fazia parte do grupo, agradeceu muito por termos promovido esse trabalho e estreitou os laços com a mãe e filha. O fechamento dessa história foi um forte e emocionante abraço entre alunos e os representantes da escola”, comove-se.

Histórias de êxito

As histórias exitosas para aplacar a violência são inúmeras, segundo explica Clodoaldo. Entre os reeducandos de Luziânia a efetividade do programa, na prática, pode ser sentida por todos os que desempenham esse trabalho e participam dos círculos de paz, bem como pelos administradores dos presídios.

“Tivemos o caso de especial de interno muito violento que já tinha ido para a prisão 3 vezes. Depois de um trabalho com os círculos de construção de paz ele nunca mais voltou pra a prisão. Hoje ele trabalha como protético em um grande consultório de São Paulo e é um exemplo par aos colegas e as pessoas ao seu redor. Nem a mãe acreditava na sua recuperação e ela fala conosco quase todos os dias. Olhando para essa pessoa atualmente você jamais diria que um da ela foi presa. Os administradores do presídio asseguram que em 15 anos de trabalho nunca viram os internos chorarem daquela forma e terem o comportamento tão modificado. Eles sentem a necessidade de um olhar diferente e é justamente isso que o Pilares proporciona”, frisou.

Justiça Restaurativa e o Pilares

Em sua ampla experiência, o juiz Decildo Ferreira Lopes, da Vara Criminal da Comarca de Goianésia, estabelece um parâmetro de comparação entre a Justiça Restaurativa, com a qual trabalha ativamente há anos, e o Projeto Pilares, que também ensina a compreender o conflito sob o prisma da comunicação não violenta. Segundo o magistrado, é preciso adotar uma compreensão pelo ideal restaurativo, pois todas as estatísticas demonstram que a resposta repressiva, depois que o fato já aconteceu, não surte qualquer resultado.

“Estamos sempre à frente no cumprimento das metas do CNJ, contudo, é necessário um aprimoramento na forma de se fazer Justiça, ter um outro olhar para o fenômeno criminal. Muito mais eficaz que a repressão é a prevenção. Essa também é a proposta do Pilares que vai ajudar a projetar Goiás no cenário nacional, pela capacidade ímpar de desenvolver uma cultura de paz, restaurativa, levando o Poder Judiciário para perto da comunidade, no seio das escolas, modificando a vida das pessoas e aderindo a um modo diferente de nos relacionarmos com todos ao nosso redor”, engrandeceu.

O que é o Programa Pilares

Desenvolvido pela Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de Goiás em 2018, por meio da Divisão Interprofissional Forense (que é composta de profissionais multidisciplinares como assistentes socais, pedagogos e psicólogos), e indicado neste ano de 2022 ao Prêmio Innovare, o Programa Pilares, é fruto de uma parceria entre o TJGO e as Secretarias Municipais e Estaduais de Educação de Goiás.

O programa foi idealizado pela então juíza auxiliar da Corregedoria, Sirlei Martins da Costa, atualmente auxiliar da Presidência do Tribunal de Justiça de Goiás, que almejava desenvolver ações compartilhadas com a comunidade educacional, no sentido de contribuir para o aprimoramento de competências socioemocionais, através da elaboração de estratégias que facilitassem a resolução de conflitos por meio do diálogo compassivo.

O responsável atual pela pasta é o juiz Gustavo Assis Garcia, auxiliar da Corregedora. intuito do Pilares é promover uma mudança de paradigmas trabalhando a comunicação não violenta dentro das escolas. Ele consiste em difundir o respeito como aspecto primordial para que sejam estabelecidos o diálogo e as relações pacificadoras na solução de conflitos dentro das escolas.

Sua principal finalidade é formar facilitadores de Círculos de Justiça Restaurativa e Construção de Paz para atuarem na prevenção e resolução de conflitos no ambiente escolar, por meio de processos circulares, objetivando a disseminação da cultura de paz, a começar pela construção de valores humanos que ajudem a reduzir hostilidades, curar a dor e fortalecer relacionamentos, especialmente nas crianças e nos adolescentes dentro do ambiente escolar.

Metodologia e parceria

O Pilares contempla professores, coordenadores, apoios pedagógicos, tutores, dirigentes, entre outros. A apresentação desta metodologia relativa ao círculo de paz aborda temáticas relativas a habilidades sociais, comunicação não-violenta, promoção do diálogo, compartilhamento e resolução de conflitos, construção de relacionamentos saudáveis, estabelecimento de vínculos, valores ética, resiliência, entre outros.

O projeto advém de parcerias interinstitucionais e o curso é ministrado pela equipe de instrutoras da Divisão Interprofissional Forense da CGJGO, cujo público-alvo são os professores, coordenadores, dirigentes e tutores/apoio pedagógicos das Redes de Educação do Estado e do Município.

A parceria com a Seduc (em nível estadual) abrange São Miguel do Araguaia, Formosa, Campos Belos, Planaltina, Itapuranga, Águas Lindas de Goiás, Caldas Novas, São Luís dos Montes Belos, Anápolis, Aparecida de Goiânia, Catalão, Goiatuba, Itapaci, Itumbiara, Jussara, Minaçu, Pires do Rio, Porangatu, Quirinópolis, Uruaçu, Silvânia e Trindade. Já no âmbito municipal foram alcançados os municípios de Goiânia, Luziânia, Goianésia, Novo Gama, Itaberaí, Orizona e Cristalina.

Estatísticas positivas

De 2018 a 2022, foram realizados, em um âmbito geral, no Estado de Goiás, 3.087 círculos de construção de paz pelos 326 profissionais capacitados atingindo, assim, quase 30 mil pessoas (27.108), e impactando 140 instituições.

Entre o público capacitado estão profissionais da educação, professores, coordenadores pedagógicos, diretores de escolas, apoios pedagógicos das Coordenadorias Regionais de Redes Estaduais e Municipais, e profissionais da Gerência de Saúde do Trabalhador da SME.

São parceiros do Programa Pilares até o momento as Secretarias Municipais de Educação de Goiânia, do Estado de Goiás, de Luziânia, de Goianésia, de Itaberaí, de Anápolis, de  Novo Gama e de Orizona.

Números assustadores e massacres

Segundo as estatísticas nacionais, nos últimos 10 anos pelo menos 8 ataques em escolas com armas de fogo foram cometidos por alunos e ex-alunos, incluindo o Colégio Goyases, escola particular de ensino infantil e fundamental, em Goiânia, capital do Estado de Goiás, palco de um massacre em outubro de 2017, quando um aluno de 14 anos atirou contra colegas dentro de uma sala de aula, matando dois meninos de 12 e 13 anos e ferindo outros quatro, antes de ser impedido por alunos e professores quando tentava recarregar a arma. Filho de policiais militares ele usou uma pistola da mãe para cometer o crime e alegou que foi motivado por ser vítima de bullying de colegas.

Já estudos científicos internacionais feitos com base na análise do perfil de dezenas de atiradores no mundo trazem conclusões intrigantes: na maioria dos casos, não havia sinal de psicopatia nos atiradores, o que leva os pesquisadores a acreditarem que experiências de vida, como traumas, abusos ou outros fatores sociais, possam desenvolver um comportamento agressivo em uma pessoa sem sinais de doença mental.

"O que sabemos é que mesmo pessoas biologicamente saudáveis podem desenvolver problemas assim quando submetidas a condições adoecedoras, ou quando inseridas numa cultura doente, pelo fato de que nossas crenças, nosso modo de interpretar e compreender a realidade não é algo imutável, fixo, rígido", explica o doutor em Psicologia e professor do Instituto Federal de Goiás Timoteo Madaleno Vieira, autor de um artigo em que revisou dezenas de estudos internacionais sobre o perfil dos atiradores e concluiu que classificá-los sempre como psicopatas é simplista e incorreto. (Texto: Myrelle Motta - Diretora de Comunicação Social da Corregedoria-Geral da Justiça de Goiás/Arte: Hellen Bueno- Diretoria de Planejamento e Programas da CGJGO)

 

 

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