Em uma escola da Comarca de Uruaçu, a pequena *Melissa, de apenas 4 anos, com o olhar doce e inocente, inerente de uma criança, um pouco cabisbaixa e tímida, ouve com atenção e medo uma exposição feita pela equipe de profissionais da Divisão Interprofissional Forense da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de Goiás sobre abuso sexual infantil. Ainda muito pequena e sem ter a exata noção dessa triste realidade, da qual foi vítima, ela começa a quebrar o silêncio e a contar que aquela situação aconteceu com ela porque um parente “tocou” suas partes íntimas.

Esse cenário foi retratado também por outras crianças e adolescentes do município atendidas recentemente pelo Projeto Escuta, uma iniciativa inédita no País criada em 2015 pelo órgão censor com o intuito de auxiliar na prevenção e no combate de crimes sexuais contra o público infantojuvenil, encorajando as crianças e os jovens a denunciarem os abusos usando linguagem acessível e humanizada e fortalecendo a Rede de Proteção no Enfrentamento a esta natureza de violência com a capacitação de profissionais ligados a área por meio de workshops e palestras orientativas.

O retrato cruel pode ser traduzido em números: 70% das vítimas de estupro no Brasil são crianças e adolescentes. A maioria possui entre 7 e 14 anos. O País está entre um dos primeiros no ranking internacional com mais casos de exploração sexual de crianças e adolescentes, de acordo com dados de denúncias recebidas pelo Disque 100.

Desde 2019, quando pela primeira vez o Fórum Brasileiro de Segurança Pública conseguiu separar os dados do crime de estupro do crime de estupro de vulnerável, é possível enxergar que 53,8% desta violência foi cometida contra meninas com menos de 13 anos. Esse número sobe para 57,9% em 2020 e 58,8% em 2021.  

Em âmbito estadual, somente no primeiro trimestre de 2022, a Secretaria de Segurança Pública de Goiás (SSP-GO) registrou 294 casos de estupro contra crianças menores de 11 anos. Os dados são da última auditoria realizada pelo órgão e as estatísticas da pasta são menores que em 2021, mas especialistas apontam que a subnotificação pode ter aumentado na pandemia, período de maior vulnerabilidade das vítimas.

No mês da Campanha Maio Laranja deste ano, que trata sobre o combate ao abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, os dados são alarmantes. Goiás registra um abuso sexual a cada quatro horas, uma média de seis por dia, conforme apontou a SSPGO.

A escola como refúgio e o papel essencial do Projeto Escuta

Pesquisas nacionais demonstram ainda que o local da violência também permanece o mesmo: 76,5% dos estupros acontecem dentro de casa, na maioria esmagadora das vezes, por pessoas da confiança da criança como o pai, padrasto, avô, tio, primo, dentre outros. Dessa forma, a escola acaba sendo um refúgio e se torna elemento estratégico para o enfrentamento do estupro de vulnerável.

A escola se torna, assim, ferramenta fundamental no processo de identificação e de denúncia, mas, sobretudo, no processo de prevenção. Muitas vezes o abusador se aproveita da ignorância da criança e, se ela tiver consciência, dependendo da situação, pode mesmo evitar que o abuso ocorra.

“É justamente aí que entra o Projeto Escuta com o desenvolvimento de ações integradas de apoio às crianças e adolescentes que estão sem situação de vulnerabilidade com a realização de palestras de cunho orientativo, promovendo, assim, uma sensibilização para esse grave problema utilizando os recursos da escuta humanizada e evitando uma revitimização”, ressaltou o juiz Gustavo Assis Garcia, auxiliar da CGJGO e responsável pela pasta da Infância e Juventude, pontuando que o assunto é cercado de preconceitos e temores diversos.

O magistrado lembrou que estudos indicativos mostram que em 44% dos casos de abuso sexual de crianças e adolescentes o professor é o primeiro a saber porque eles tem confiança a relatar a ele a situação, já que os casos ocorrem no próprio ambiente familiar.

“Desta maneira, o professor precisa estar preparado para receber essa notícia, para ouvi-la de forma adequada, sem que a criança eu jovem passem por um trauma ainda maior. Essa qualificação e cuidado são propiciados aos professores e aos profissionais da rede de proteção pelo Escuta”, acentuou o magistrado.

Capacitação e atendimentos

Foram capacitados pelo Projeto Escuta, desde a sua efetiva implantação em meados de 2015, 361 profissionais da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente, incluindo professores, além do atendimento de mais de 3,5 mil crianças e adolescentes nas 18 escolas visitadas em três municípios que necessitaram de intervenção da equipe da Divisão Interprofissional Forense da CGJGO, cujos altos índices de abuso sexual foram apontados pela rede: Cavalcante, Cachoeira Dourada e Uruaçu.

Em Uruaçu, foi ministrado no mês de setembro pelas instrutoras Maria Nilva Fernandes Moreira, assistente social e responsável pela Divisão Interprofissional Forense da Corregedoria, e pela psicóloga Tatiana Freire Franco, também integrante da divisão, o Workshop Crimes Sexuais contra crianças e adolescentes: formas adequadas de abordagem, no Tribunal do Juri do fórum local, com carga horária de quatro horas e certificação da Escola Judicial de Goiás (Ejug), apoiadora da iniciativa.

Voltado aos profissionais integrantes da Rede de Educação, Saúde, Proteção Socioassistencial e Conselheiros Tutelares do Município de Uruaçu, o workshop  contemplou temas relacionados ao contexto da violência sexual contra crianças e adolescentes, sinais e sintomas da violência sexual, condução de entrevistas e formas adequadas de abordagem, falsas memórias, a escola interrompendo o ciclo de violência sexual, notificação compulsória, medidas protetivas no caso de suspeita de violência sexual, responsabilidade social, violência institucional (Lei 14.431/2022) e aspectos da Lei
Henry Borel (Lei 14.344/2022). O momento também contou com esclarecimento de dúvidas dos participantes e distribuição de flyers.

Participaram da ministração 83 profissionais da Rede de Educação e Proteção Socioassistencial do Município de Uruaçu, incluindo CRAS, CREAS, CMDCA, Conselho Tutelar, Agentes de Proteção, UPA, Prefeitura, Secretaria de Educação, Secretaria de Assistência Social.

No período matutino do dia 15 de setembro a equipe visitou três escolas estaduais de Uruaçu: a  Estadual Polivalente, a Estadual Quilombola Filomeno Luiz de França e a Municipal Oscar Barroso de Souza, com ação de orientação a alunos do 1º ao 9º ano, quanto à identificação de abuso sexual, formas de prevenção e modo de denunciar, através de palestra com linguagem adequada à idade, exposição de vídeos educativos e distribuição de flyers. Foram contempladas 480 crianças e adolescentes.

Nesse dia, foi solicitada a presença de conselheiras tutelares do município, que, ao final das palestras, acolheram e receberam cinco adolescentes e três crianças, que revelaram sofrer violência sexual no ambiente familiar.

Escuta colaborativa

Para Thalita Monteiro de Araújo Costa, mediadora da inclusão na Coordenação Regional de Educação de Uruaçu, que participou do workshop, o momento foi notório, já que, não forma medidos esforços pela equipe da Divisão Interprofissional Forense, para esclarecer e orientar todos sobre a importância do fortalecimento da Rede de Proteção do município de Uruaçu no enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes.

A seu ver, outro ponto significativo para a Rede Pública Estadual foi a escuta colaborativa em duas unidades escolares de Uruaçu que deu voz às crianças e adolescentes do município.

“Foi um momento emocionante e temos que ter a percepção de que essas ações são urgentes e dão um significado concreto para o combate à violência sexual porque municiam nossas crianças e adolescentes de informações sobre esse assunto difícil numa linguagem acessível, dinâmica e, sobretudo, humana. Ficamos muito gratos com o trabalho desenvolvido e externamos o convite para ampliar esse projeto em toda Rede Estadual da Coordenação Regional de Educação de Uruaçu. Temos nove municípios jurisdicionados que precisam desse importante trabalho”, enalteceu.

Rompendo tabus e quebrando o silêncio

A assistente social Maria Nilva Fernandes, que está à frente da Divisão Inteprofissional Forense da CGJGO e que foi uma das palestrantes do workshop em Uruaçu, explicou que é preciso romper tabus e acabar com o silêncio que permeia essas situações, pois o agressor age usando meios de coação e manipulação instigando o medo na criança de falar sobre o que realmente está acontecendo. Neste sentido, ela também aponta a escola como ferramenta primordial para combater e prevenir essa violência, já que, o fortalecimento do sistema de garantia às crianças e adolescentes contribui para a responsabilização e efetiva punição dos abusadores.  

“O Projeto Escuta nasceu justamente a partir das denúncias que recebemos, em meados de 2015, sobre abusos e violência sexual contra crianças e adolescentes da comunidade quilombola, em Cavalcante, local onde fizemos na época uma ampla intervenção chegando a atender mais de 2 mil crianças e adolescentes, orientando e capacitando mais de 200 profissionais da Rede de Proteção, incluindo os professores, para lidarem com aquela situação de extrema gravidade. Através do Escuta disponibilizamos aos professores e à comunidade escolar o acesso a informações que possibilitam desenvolver a capacidade de reconhecer indícios de abuso sexual e identificar situação de risco de crianças e adolescentes”, sublinhou.  

Sobre o Projeto Escuta

O Projeto Escuta foi instaurado pela Portaria nº 198/2015, da CGJGO, que estabeleceu o grupo de trabalho interprofissional para prevenção de crimes sexuais contra crianças e adolescentes e fortalecimento da Rede de Proteção no Enfrentamento desse tipo de violência. A iniciativa segue os princípios da Recomendação nº 33, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Editada em 2010, a norma recomenda aos tribunais “a criação de serviços especializados para escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência nos processos judiciais”.

Nas ações desenvolvidas, atualmente, ganha destaque a promoção da denúncia e o rompimento do silêncio, assim como a orientação aos profissionais da Rede de Proteção quanto à escuta especializada e a integração das políticas de atendimento a crianças e adolescentes, previstas na Lei nº 13.431/2017, que "estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência".

A capacitação dos professores e o conjunto de ações executadas por juízes auxiliares da Corregedoria-Geral da Justiça de Goiás e pela Secretaria Interprofissional Forense (órgão da Corregedoria) neste sentido recebeu o nome de Projeto Escuta. Uma das iniciativas da Corregedoria para humanizar a abordagem às vítimas de abuso foi a publicação de uma cartilha direcionada tanto a adultos quanto a crianças. Com linguagem simples e ilustrações didáticas, o material facilitou que novos casos sejam denunciados sem expor as vítimas a mais constrangimento.

Os trabalhos do Escuta tiveram início em Cavalcante após inúmeras denúncias de abuso sexual contra crianças e adolescentes nas comunidades remanescentes de quilombolas, em meados de 2015. Seu principal objetivo é desenvolver um conjunto de ações integradas voltadas à prevenção, proteção e apoio a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.

Resposta da Justiça à sociedade

Na época, a equipe interprofissional da CGJGO compareceu ao município de Cavalcante, visitando 12 escolas, com a realização de palestras de orientação e sensibilização quanto à identificação do abuso sexual e formas de denúncia. Cerca de 2,2 mil crianças e adolescentes foram atendidos e 2,3 mil cartilhas foram distribuídas. Desde que as denúncias foram veiculadas na imprensa, no início de 2015, uma equipe de juízes auxiliares da Corregedoria, pedagogos, assistentes sociais e psicólogos da Corregedoria visitou o município de Cavalcante para dar uma resposta da Justiça aos abusos relatados.

Neste período, foi formada ainda uma rede com representantes das instituições que lidam com a proteção dos direitos da criança e do adolescente na região de Cavalcante, como o Conselho Tutelar, a Polícia Militar, as secretarias estaduais de Saúde e Educação, além do Ministério Público. A rede tornou mais ágil o atendimento e os procedimentos de denúncia e investigação. A atuação da equipe interprofissional forense da CGJGO visa analisar, compreender e intervir sob o fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes.

Metodologia

As ações do Projeto Escuta nas escolas estão divididas em duas etapas principais. Primeiro é ministrado um workshop (com duração de quatro horas e certificação da Escola Judicial de Goiás - Ejug) tendo como público professores da rede de ensino e profissionais da Rede de Proteção, objetivando subsidiá-los com informações a respeito da violência sexual e sobre a importância da condução adequada de entrevista e integração da Rede de Proteção.
 
A segunda etapa consiste na realização das atividades de orientação às crianças e adolescentes nas escolas, ensinando o que são partes íntimas e quem pode tocá-las, objetivando fortalecê-los quanto à detecção de situações abusivas, denúncia e quebra do silêncio.

Entre o conteúdo abordado estão assuntos relacionados ao contexto da violência sexual contra crianças e adolescentes, sinais e sintomas da violência sexual, condução de entrevistas e formas adequadas de abordagem, falsas memórias, a escola interrompendo o ciclo de violência sexual, notificação compulsória (Ministério da Saúde), medidas protetivas no caso de suspeita de violência sexual, e responsabilidade social.

A metodologia inclui a distribuição de folder informativo, apresentação de vídeos educativos, que abordam a temática da violência sexual contra crianças e adolescentes, e orientações sobre como e onde denunciar. *Os nomes e as imagens das crianças e adolescentes atendidos pelo Projeto Escuta são devidamente resguardados na veiculação desta matéria jornalística, conforme prevê a lei e o Estatuto a Criança e do Adolescente (ECA). (Texto: Myrelle Motta - Diretora de Comunicação da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de Goiás/Edição de imagens: Acaray Martins- Centro de Comunicação Social do TJGO)

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